Esta semana o Brasil inteiro discute o caso da adolescente que foi sofreu estupro coletivo no Rio de Janeiro. Tirando bolsões de ignorância e preconceito, sempre os mais estridentes nas redes sociais, o sentimento coletivo é de choque, tristeza e alguma resignação. O que ninguém discutiu foi a possibilidade da menina ter engravidado de um dos estupradores. Dezesseis anos, violentada por dezenas de garotos? Probabilidade enorme de gravidez. Ela engravidou? Não sabemos. Muitas mulheres estupradas engravidam. Se meninas adolescentes, maior a probabilidade, claro. Vamos torcer que não seja o caso dela. Se estiver grávida, sem problemas, porque a lei brasileira dá conta desses casos. O Brasil já rejeitou o argumento de que interromper gravidez é "tirar uma vida". Surpresa: o aborto já é permitido no país. Hoje, só em dois casos (infelizmente; o aborto precisa ser legalizado). Quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher. E quando a gravidez é resultado de um estupro. Mesmo que os fetos sejam perfeitamente viáveis, veja bem. É direito legal da mulher interromper a gravidez. A lei aceita, por enquanto só nesses dois casos, e a mulher não está cometendo nenhum crime. Mais que isso: nesses casos, o Estado tem o dever de fornecer o auxílio necessário para amparar as mulheres que optarem por abortar. Na cidade de São Paulo, por exemplo, são oferecidos os seguintes serviços para as mulheres que tenham sido estupradas e decidam pelo aborto: - Atendimento médico - Contracepção de emergência para casos de estupro, em até 72 horas do ocorrido - Coleta de material para identificação do agressor por meio de exame de DNA - Acompanhamento clínico, psicológico e social durante e depois da interrupção da gravidez (ou, se for o caso, durante o pré-natal) - Exames laboratoriais para diagnósticos de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs). Isso é a lei. Há quem queira mudá-la. Para pior. Como a nova Secretária Nacional de Políticas Para as Mulheres, Fátima Pelaes. Na terça-feira, partipou de seu primeiro ato público no cargo, sentada ao lado de Michel Temer. Fátima é socióloga e foi deputada federal por quatro vezes, pelo PMDB do Amapá. Fez parte do governo Dilma. Ficou até abril deste ano no cargo de diretora administrativa da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). A nova secretária é contra o aborto em qualquer situação. Mesmo em caso de estupro. Já afirmou que luta para mudar a lei nesse sentido. Detalhe assustador: ela mesma é fruto de um estupro. Em 2010, Fátima revelou em um discurso à Câmara que que sua mãe engravidou depois de ser estuprada. Sua mãe foi estuprada na cadeia, quando estava cumprindo pena. Ela não conhece a identidade do pai. Fátima já foi a favor do aborto, mas mudou de opinião ao converter-se. Ela faz parte da Assembléia de Deus. Como muitos cristãos fervorosos, evangélicos e católicos, Fátima é radicalmente contra o aborto. O que ela disse na Câmara, em 2010: "Hoje estou aqui podendo dizer e defender que a vida começa na hora da concepção sim. Se há tempos atrás tivesse feito isso (aborto) não estaria aqui hoje. A gente tem que pensar que dá-se um jeito, consegue sobreviver. Não é fácil, mas é possível. Só eu sei a dor... Eu já estive também em alguns momentos nesta comissão defendendo o direito ao aborto, dizendo que toda mulher tem direito, que a vida não começa na concepção. Mas eu precisava ser trabalhada, ser curada, eu não conseguia falar disso… Hoje eu posso. Temos que pensar que direito nós mulheres temos de tirar uma vida. Nós temos aqui, como seres humanos, de trabalhar pela vida." Em entrevista para um site religioso, Fátima diz que entre 1991 e 2002, "como ainda não conhecia Jesus Cristo, defendi bandeiras de lutas contrárias aos valores bíblicos, como a defesa do aborto, por entender, naquela época, que a mulher era 'dona' de seu corpo". Na mesma entrevista, Fátima Pelaes declarou ter colocado seu mandato à disposição de Deus. "Firmei um compromisso de glorificar o nome do Senhor naquela Casa de Leis.". Fátima tem todo direito à sua fé e opiniões. Mas o argumento de que "toda vida é sagrada" não tem nexo. "Sagrado" é um termo sem significado jurídico. Pessoas diferentes entendem que coisas diferentes são "sagradas". O pecado de um é virtude para outro. Fé pode ser um impeditivo para uma mulher decidir pelo aborto; se ela preferir seguir com a gravidez, porque é o que sua religião prega, tem todo direito de fazer isso. O que importa em uma sociedade diversa, democrática, não-teocrática, é a lei. E as leis devem servir ao conjunto da sociedade, não à fé de quem ocupa momentaneamente aquele cargo. E falando em lei, tem uma outra razão porque Fátima Pelaes não deveria ter sido indicada para cargo público, nem por Dilma, nem por Temer. Seu nome está envolvido em um escândalo de corrupção, como tantos no governo anterior e neste. Foi denunciada por desvios de dinheiro público do Ministério do Turismo, em 2011. Em depoimento à Polícia Federal, uma sócia da Conectur (uma empresa fantasma) afirmou que Fátima, na época deputada, embolsou recursos de emendas. O objetivo seria financiar sua campanha à reeleição. Fátima nega ter passado a mão na nossa grana. Quem sabe é inocente. Mas deveria ser requisito básico para ocupar cargo público nenhuma suspeição de crime. No Brasil temos a regra contrária: todo político é inocente até que seja julgado culpado pelo Supremo Tribunal Federal e não haja possibilidade de recurso... Quanto a Michel Temer, bem, o que dizer? Os fatos estão aí escancarados. Mas no Brasil de 2016 - em que só 35% dos estupros são notificados; no Rio de Janeiro, em que só 6% dos acusados por estupro vão a julgamento; na semana em que uma garota é estuprada por 33 bandidos - Temer indicar para Secretária das Mulheres alguém que é contra o aborto até em caso de estupro, é mais que um escárnio. É mais que passar recibo de machista. É uma violência contra as mulheres. A esperança é que nesse governo cai um ministro por semana. Quem sabe essa aí também cai já? Depende, como sempre, e exclusivamente, de nós. (P.S.: algumas horas depois de sua escolha para a Secretaria repercutir pessimamente, Fátima recuou e publicou a seguinte nota oficial: "Sempre trabalhei de forma democrática para defender a ampliação dos direitos das mulheres. Em respeito à minha história de vida, o meu posicionamento sobre a descriminalização do aborto não vai afetar o debate de qualquer questão a frente da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres. A mulher vítima de estupro, que optar pela interrupção da gravidez, deve ter total apoio do Estado, direito hoje já garantido por lei. Trabalharei, incansavelmente, para combater qualquer tipo de violência contra a mulher.")
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